Patentes e Open Source na UE por um político português

Coisa para mim bastante rara que é termos um político a falar de uma coisa e que realmente se percebe que sabe e estudou o assunto de que está a falar…

É o Bruno Dias, deputado do PCP e está num artigo de opinião no Expresso Online.

http://online.expresso.pt/opiniao_int/artigo.asp?id=24744666
Bruno Dias*, escreve para o EXPRESSO Online
Software na UE: A Caixa de Pandora

Imagine que se dirige a uma papelaria para comprar um lápis. E que, como seria de esperar, a sua escolha recai sobre aquele que é o lápis mais vendido do mundo, que toda a gente usa e que se vê por toda a parte.
 
Chegado a casa ou ao escritório, abre a embalagem do lápis e fica a saber que tem de entrar em contacto com o fabricante, e fornecer-lhe uns quantos dados pessoais – sob pena de o lápis deixar de escrever ao fim de poucos dias.
 
Agora imagine que começa a descobrir que está impedido de afiar o lápis, que está impedido de escrever com ele num caderno fabricado pela concorrência, ou de apagar com borrachas da concorrência; que está impedido de o emprestar a quem quer que seja. Não querendo acreditar no que está a acontecer, chega à conclusão de que afinal não comprou um lápis – o que fez foi adquirir o direito de o utilizar, em determinadas condições (que evidentemente não conhecia).
 
Tudo isto é demasiado estranho. Mas, só para me fazer a vontade, imagine ainda que o fabricante do lápis registou a patente e que agora mais ninguém o pode produzir, nem sequer utilizar essa tecnologia para outros produtos (compassos, por exemplo, ou lapiseiras).
 
E, para o delírio acabar em grande, imagine finalmente que, sem que ninguém dê por isso, esse maldito lápis ainda se põe a escrever sozinho, a copiar documentos seus e a assinar cheques!

Parece mentira mas é verdade

Então vamos por partes.

Ninguém que tenha o mínimo de bom senso hesitará um segundo em achar esta «história» absolutamente estranha e inverosímil. Mas se em vez de «lápis» dissermos «programa de computador» ou «sistema operativo», as coisas começam assustadoramente a bater certo.

Claro que esta imagem está consideravelmente longe da realidade. Primeiro, porque não é por usarmos «lápis» diferentes que deixamos de poder ler o que nos escrevem (o que, convenhamos, permite uma outra liberdade). Segundo, porque para o utilizador de certos programas de computador, as restrições e proibições no seu uso são muito (mas muito) mais draconianas, complexas e abrangentes do que estas que eu «imaginei» com esta história do lápis.

Basta que tenhamos em conta os famosos «acordos de licenciamento de utilizador final» de alguns sistemas operativos ou aplicações do chamado «’software’ proprietário» e encontraremos situações em que nos perguntamos quem é afinal o proprietário do quê, ou de quem.

Depois há o registo de patentes. «Inventos» tão prosaicos como o-cursor-que-muda-de-cor-quando-passa-por-uma-imagem (não tem nada que saber, é só um «programa» com três ou quatro linhas de comando) ou as banais paletas/menus que podemos sobrepor no ecrã, entre tantos, tantos outros, correspondem a patentes registadas que em alguns casos envolveram, nas barras dos tribunais norte-americanos, processos judiciais de milhões de dólares.

Finalmente, quanto ao «lápis que escreve sem darmos por isso», parece mentira mas é verdade. Na esmagadora maioria dos casos, nenhum de nós pode garantir o que está a acontecer no nosso computador enquanto o utilizamos para escrever, para pesquisar na «web» ou para aceder ao correio electrónico. Porque ninguém sabe que operações algorítmicas, funções, sub-rotinas e outras que tais são desencadeadas por um «software» cujo código é formalmente conhecido apenas pelo fabricante, pela Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos da América e por mais algumas (poucas) entidades autorizadas.

É com estas linhas que se cose a maior parte dos utilizadores das tecnologias da informação – linhas que o império tece, dominado como é por meia dúzia de gigantes monopolistas quase sempre alimentados na base de uma estratégia de investimento em publicidade e «marketing», muito superior ao do desenvolvimento, produção e distribuição juntos.

Muito há para dizer sobre estes grupos económicos, mas por agora direi apenas que uma boa parte do seu futuro – e principalmente do de nós todos – está a ser decidido, discreta e paulatinamente, na União Europeia.

 
«Lá se fazem, cá se pagam»

Chama-se «patente comunitária» mas podia perfeitamente chamar-se Caixa de Pandora. É matéria que está a ser objecto de um processo de co-decisão entre a Comissão Europeia, o Conselho e o Parlamento Europeu.

Para o que agora nos interessa, a guerra estalou com a proposta de directiva apresentada pela Comissão Europeia (e defendida com unhas e dentes pelo comissário Bolkestein) no sentido de consagrar a possibilidade de registar patentes de «software». Ou seja, pondo em causa a consideração, assumida em 1973 na Convenção de Munique, basicamente no sentido de que o «software» não é patenteável.

As alterações entretanto produzidas na proposta de directiva permitem clarificar o contributo técnico para que os inventos que implicam «software» possam ser patenteáveis. Mas esta directiva aprovada em primeira leitura admite, por exemplo, a patenteabilidade de um algoritmo «na condição de esse método ser utilizado para solucionar um problema técnico», mantendo a ideia de que o «carácter técnico» pode configurar «um invento patenteável» e realçando a suposta «importância da protecção por patente». O que na prática significa manter a abertura às patentes de «software».

Foi esta preocupação que levou os deputados do PCP, a par de outros membros do Grupo Confederal da Esquerda Unitária Europeia no Parlamento Europeu, a apresentar uma moção de rejeição daquela proposta de directiva. Porque o caso é demasiado grave para nos contentarmos com «males menores»…

Entretanto, e na sequência da votação de 24/9/2003 no Parlamento Europeu, o Conselho de Ministros da União Europeia mandou elaborar um «livro branco» para que a matéria seja reexaminada pelo Parlamento, onde se defende designadamente que algoritmos matemáticos e métodos de gestão atribuídos pelo Gabinete Europeu de Patentes sejam (contra a letra e o espírito da legislação em vigor) automaticamente invenções patenteáveis; que o uso de protocolos patenteados e de formatos de ficheiros para fins de interoperabilidade sejam ilegais, assim como a publicação em linguagem formal num servidor da Internet da descrição de uma ideia patenteada; etc. Propostas que testemunham bem a força dos grandes interesses económicos e as grandes pressões exercidas sobre os órgãos da União Europeia.

Um negócio dentro do negócio

A prazo, o perigo real que se coloca é o de as patentes sobre «software» se revelarem não um incentivo à inovação e ao desenvolvimento mas um verdadeiro obstáculo à produção e comercialização de programas, para todas as micro, pequenas e médias empresas que não têm milhares de patentes registadas – o que suscita o problema da submissão da «indústria» da produção técnica às lógicas da «indústria» do registo e comercialização de patentes.

A título de exemplo, refira-se o caso da empresa líder mundial de patentes nesta área – a IBM -, que entre 1993 e 2002 adquiriu 22 mil patentes, das quais veio a extrair cerca de dez mil milhões de dólares em receitas de licenciamento (em larga medida, através de contencioso judicial).

A própria Comissão Federal do Comércio dos EUA, assim como a Academia das Ciências daquele país, já em 2003 exprimiram fundadas preocupações quanto à exagerada proliferação de patentes, registando assumidamente um constrangimento ao desenvolvimento de forças produtivas daí decorrente – que neste caso ameaça vir a instalar-se também na Europa, criando uma situação insustentável para a grande maioria das empresas deste sector.

No limite, como diz um camarada meu, corremos o risco de ver a escrita de programas como a construção de um «puzzle», em que cada peça está sujeita a pelo menos uma patente registada. E assim chegamos ao ponto em que o desenvolvimento e a produção de uma solução ou programa informático se torna um simples pormenor de todo o processo, quando comparado com a «via-sacra» jurídica e administrativa a percorrer até se descobrir que o produto desenvolvido não tem «lá no meio» nenhuma patente já registada por algum gigante do sector…

E o que se coloca às empresas coloca-se ainda com mais acuidade ao campo do ensino e da investigação. Pois se já hoje os estudantes do ensino superior público pagam propinas para que as universidades e politécnicos paguem a conta da luz e da água, imagine-se o que seria ter estas instituições confrontadas com a factura dos pagamentos de patentes!

Consenso nacional?!

É neste contexto que significativas movimentações se desenvolvem, em Portugal, na Europa e no Mundo, dando voz comum a um protesto e corpo a um combate contra a criação destas patentes. Mais de 300 mil cidadãos já assinaram uma petição contra estas intenções da União Europeia. Iniciativas simbólicas de protesto foram e estão a ser organizadas por cidades de toda a Europa.

Mas, a este propósito, e apesar das vozes que se levantam nesse combate, o que verificamos afinal é que a falta de seriedade com que o Governo tem conduzido os processos de discussão pública sobre esta matéria é mais digna do anedotário nacional do que propriamente de quaisquer conceitos de participação e democracia.

Chegaram inclusivamente testemunhos segundo os quais o Instituto Nacional da Propriedade Industrial terá transmitido em sede comunitária um suposto «consenso nacional» absolutamente espantoso, a favor das patentes de «software» – sendo dado como certo que nenhum cidadão português detém nenhuma das cerca de 30 mil patentes de «software» atribuídas pelo Gabinete Europeu de Patentes, pelo menos até ao ano passado!

Ora, esse «consenso» a favor das patentes de «software» terá sido alcançado através de uma consulta conduzida pelo INPI em 2001 e que consistiu no envio de um ofício a 19 directores de empresas, afirmando uma posição de defesa das patentes de «software», tendo sido recebidas três respostas – as quais manifestavam apoio à posição do instituto!

Se é isto que o Governo considera consenso nacional, se é isto que o Governo considera um processo sério de discussão pública, estamos esclarecidos. O que nos falta saber é se este processo fica mesmo por aqui ou se, pelo contrário, o Governo tomou alguma medida para que esta discussão seja digna desse nome. Foi nesse sentido que o PCP apresentou a semana passada, na Assembleia da República, um requerimento ao Governo, confrontando-o com esta situação, pedindo-lhe explicações e perguntando se já foi – ou vai ser – reaberto o processo de consulta pública sobre esta matéria.

E a seguir registam a patente do alfabeto?

Entretanto, apesar de este «episódio» do INPI ser um preocupante indicador, a verdade é que subsiste a questão de fundo: afinal, que intervenção tem feito o Governo em sede de Conselho Europeu? Ninguém sabe!

A população portuguesa, os utilizadores das tecnologias (organizados ou não em movimentos), as comunidades de investigação e ensino, a própria Assembleia da República (!), todo o país está sem saber o que tem sido a posição oficial do Estado Português nesta matéria – porque o Governo nada diz.

Este assunto é demasiado importante para estar a ser decidido desta maneira. Porque está em causa desde logo o desenvolvimento científico e as suas dinâmicas. Afinal, pela própria importância que as tecnologias assumem na economia actual, não é muito difícil perceber que o «software», tal como o lápis (lembra-se?) não é só uma mercadoria – é cada vez mais um instrumento de trabalho. É um meio de produção. E, por isso, não pode ficar nas mãos de três ou quatro gigantes…

Mas há um outro aspecto central para equacionarmos.

Mesmo por uma questão de princípio – muito mais importante do que à primeira vista possa parecer -, a verdade é que o conceito de que o conhecimento é um bem universal (e como tal deve estar livre para o usufruto de toda a humanidade) não é compatível com o do registo de patentes sobre áreas do conhecimento. Tal como não estamos assim tão longe, nesta lógica dominante, de ver resultados da genética passíveis de patentes – isto é, da patenteabilidade da própria vida.

A questão central que está em causa neste processo, e nesta proposta de directiva, prende-se com a consideração – que é urgente recusar – de que o saber humano, a descoberta científica, o invento de uma nova solução ao nível da programação informática, sejam domínios tratados como mercadoria, patenteáveis e comercializados numa lógica de mercantilização da vida do ser humano.

Por isso, o PCP entregou, também na semana passada, novas iniciativas parlamentares na Assembleia da República, designadamente propondo a recomendação formal ao Governo de que este assuma em sede de Conselho Europeu uma posição clara de recusa face à perspectiva de consagração das patentes de «software», em defesa do desenvolvimento, rejeitando e combatendo a mercantilização do saber.

Duas faces da mesma moeda

Por outro lado, estas iniciativas do PCP incluem propostas concretas para o desenvolvimento do «software» livre em Portugal. Porque falta tomar medidas em relação ao que já hoje está disponível e vai sendo desenvolvido em matéria de «software» livre – o tal que na prática contraria em absoluto esta lógica imperialista dominante.
 
Para nós, está em causa nesta discussão o problema da liberdade de escolha – uma liberdade que é afirmada na legislação que existe, mas que não é exercida. Não pretendemos impor soluções, quaisquer que sejam, mas é preciso impedir a sistematização das más soluções, que é o que tem acontecido até hoje.

Não vale a pena (aliás, será contraproducente) avançar por decreto para sistemas indiscriminados que careçam de sustentação. Mas é indispensável que se avance em projectos concretos e que se crie as condições técnicas para que, nos planos educativo, científico, cultural, económico, se abra caminho à introdução desta alternativa.

Cada vez se vai tornando mais evidente que, desde que em igualdade de circunstâncias, desde que sem discriminações, o «software» livre tem demonstrado melhores respostas do que muitos exemplos do «software» proprietário.

O que é preciso é tomar medidas para que o país exerça e cultive essa liberdade, essa exigência, esse rigor na escolha de soluções no caminho de um desenvolvimento integrado e sustentável.

No fundo, trata-se de duas faces da mesma moeda. As discussões que hoje vão fervilhando sobre o «software» livre e sobre as patentes de «software» apontam afinal para uma mesma constatação: a de que esta lógica dominante do máximo lucro e dos interesses económicos acaba, ela própria, por constituir um obstáculo (eu diria, «o» obstáculo) ao verdadeiro desenvolvimento humano. A história, que é feita destas contradições e antagonismos, vai prosseguindo. E a luta continua. Aí é que não há volta a dar…

Deputado do PCP eleito por Setúbal
31 de Maio 2004 :: 11:54h

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